Estamos na contramão do direito?
- Equipe Sergio Schmidt Advocacia
- 16 de out.
- 3 min de leitura

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, publicada em 6 de outubro de 2025[1], o professor Fernando Facury Scaff, recém-convidado pelo Ministro Edson Fachin para instalar e dirigir o Centro de Estudos Constitucionais do Supremo Tribunal Federal (STF), trouxe à tona uma reflexão crucial sobre a práxis jurídica no Brasil. Com a autoridade de quem tem agora a missão de aproximar o STF da Academia, Scaff diagnosticou uma anomalia que, embora sutil, corrói as bases do nosso sistema de Justiça.
A afirmação do professor é cirúrgica e de concordância inevitável: os operadores do direito — magistrados, membros do Ministério Público e advogados — frequentemente recorrem à doutrina não como fonte de conhecimento capaz de iluminar suas teses e decisões, mas como mero adorno retórico. Nas palavras de Scaff, busca-se “o autor que mais lhe convém, o que, de certa forma, subverte o sistema, pois em vez de a doutrina balizar o entendimento jurídico, é utilizada apenas como reforço da argumentação previamente adotada, por meio de seu livre convencimento”. O resultado é uma inversão perigosa: “a doutrina segue a reboque do que o operador decidiu, em vez de iluminar a trilha a ser seguida”.
Essa inversão de papéis, que transforma a doutrina em justificativa e não em guia, expõe uma das maiores fragilidades do direito brasileiro contemporâneo: a ausência de fundamentação genuína e coerente nas decisões judiciais. O fenômeno é agravado pela prática recorrente de adornar sentenças com citações jurisprudenciais e doutrinárias pinçadas de modo utilitário (muitas vezes até fora de contexto), mascarando a falta de um raciocínio jurídico autêntico e aprofundado. Trata-se da materialização da subversão apontada por Scaff — a substituição da reflexão crítica pelo discurso de autoridade.
Neste ponto, é inevitável lembrar o pensamento do jurista Lênio Streck, que há anos denuncia essa patologia institucional. Em artigo publicado também na Consultor Jurídico[2], Streck afirma que o artigo 489 do Código de Processo Civil é o “dispositivo mais descumprido do direito brasileiro”, justamente por ser aquele que exige a fundamentação adequada e vinculada ao caso concreto. A norma veda expressamente decisões que apenas repitam o texto legal sem aplicar seus fundamentos à realidade fática, que deixem de analisar argumentos capazes de modificar o resultado do julgamento ou que invoquem precedentes sem demonstrar sua pertinência.
Contudo, o problema não se encerra aí. Embora as mais altas Cortes do país — STF e STJ — realizem julgamentos tecnicamente qualificados, amparados em criteriosa análise constitucional e infraconstitucional, muitos desses entendimentos são sistematicamente ignorados pelas instâncias inferiores, em flagrante descumprimento aos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil. Esses dispositivos impõem aos tribunais o dever de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, bem como de observar os precedentes vinculantes. Quando juízes e tribunais deixam de cumprir tal dever, subvertem o próprio modelo de sistema jurídico baseado na integridade e na previsibilidade.
A consequência é desastrosa: o jurisdicionado, em busca da efetivação de um direito já reconhecido pelas Cortes Superiores, vê-se compelido a trilhar o penoso e moroso caminho recursal até obter uma decisão que apenas reafirme o que já era pacífico. Esse descompasso entre o topo e a base da pirâmide judicial alimenta o congestionamento do sistema de justiça, compromete a eficiência jurisdicional e mina a confiança social nas instituições.
O cenário descrito revela que estamos, de fato, na contramão do direito. A erosão da coerência jurisprudencial e o desprezo pelos precedentes tornam o sistema caótico, imprevisível e, muitas vezes, injusto. Quando a fundamentação é substituída por formalismo vazio e a jurisprudência perde sua força normativa, a segurança jurídica torna-se mera abstração.
A crítica de Scaff, aliada à contundência teórica de Lênio Streck, constitui não apenas um alerta, mas um chamado à responsabilidade. É imperativo resgatar a importância do dever de fundamentar e da observância dos precedentes, não como formalidades, mas como pilares de um Estado Democrático de Direito que se pretenda sério. Somente assim poderemos realinhar o curso e assegurar que o direito volte a caminhar — não na contramão —, mas na direção de uma justiça verdadeiramente fundamentada, coerente e efetiva.





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